terça-feira, 10 de novembro de 2009

Miguel Godinho

“Os Nossos Dias” é a tua estreia em livro, editado pela 4águas. Quando é que a poesia começou a fazer parte dos teus dias?

Descobri a poesia na minha adolescência e vem também dessa altura o gosto pela escrita, mas acho que foi talvez a partir do momento em que criei o meu blogue que perdi a vergonha de tornar públicos os meus escritos. No entanto, acho que a poesia sempre percorreu os meus dias. Mas ao que parece, tenho uma inclinação para descobrir poesia onde os outros apenas vêem melancolia.

Até que ponto é que os lugares, cenário de vivências, é tão importante para a tua poesia?

As memórias inscrevem-se sempre a partir de espaços concretos. Toda a minha poesia tem início nesses lugares reais. No entanto, sabemos que a mente transforma e reorganiza sempre esses momentos mais tarde, criando lugares mentais que se podem reconstruir sempre que lá voltamos, sempre que temos necessidade de o fazer. Acho que também esse é um tema bastante presente neste livro: as imagens mentais que manuseamos sempre que revisitamos momentos passados. São esses os lugares antigos de que falo neste livro.

Quais são os teus poetas de eleição? Os que mais te influenciam na escrita poética?

Gosto bastante de Pessoa e em particular da poesia de um dos seus heterónimos: Álvaro de Campos. O tédio, a ressaca dos dias, a expressão do desconforto, a monotonia. Há uma modernidade nele que assombra. Depois há a poesia do Peixoto, que convoca muito bem a infância, o Ramos Rosa que tem um olhar que vai à essência das coisas, o Gastão Cruz, o Herberto Hélder que rasga as palavras, o Al berto que faz sofrê-las. No fundo, acho que são estes os poetas que mais me marcaram.

Quando é que sentes que há poesia ou percebes que um poema acontece sob a vigilância das tuas próprias acções quotidianas?

Adoro olhar para o quotidiano, examiná-lo, questioná-lo, confrontá-lo e, logo, confrontar-me. Quando me sinto demasiado metido nele e nas coisinhas do dia-a-dia, tenho necessidade de questionar esta vidinha que todos levamos. Vejo poesia no negro das nossas vidas, naquilo que ninguém quer ver, nas coisas que escondemos dos outros, sinto poesia na nossa pequenez. E tenho uma enorme necessidade de dizer essa pequenez porque ninguém a pronuncia e toda a gente a esconde. As pessoas têm medo de se descobrirem no meio da sua sujidade. Às vezes parece que anda tudo tão contentinho, tão sorridente na decadência… E isso é patético mas ao mesmo tempo (e por isso mesmo) poético… É impressionante como tudo parece funcionar tão bem na hipocrisia. Observar esta evidência é consciencializar-me que faço parte de um mundo estranho. É, portanto, no quotidiano que gosto de me movimentar, de procurar assunto para escrever.

Falas da vida duma forma depreciativa: “vidinha”, “pequenez”, hipocrisia” são alguns dos termos que utilizas para descreveres o padrão existencial ao qual todos nós pertencemos. Crês que os factores negativos da vida em geral precisam de ser reciclados através da linguagem poética para alcançar uma outra forma de consciencializar os nossos dias e recriar novas atitudes e comportamentos mais civilizados e positivos?

Sim, pelo menos para nos fazer pensar, para nos obrigar a contestar o mundo fingido em que vivemos, um mundo onde as aparências valem muito. A poesia tem esta capacidade de abrir janelas mas também de nos obrigar a olhar ao espelho. Permite-nos um olhar mais atento, mais sincero, mais despido dos preconceitos que a realidade quotidiana nos impõe. E, com isso, acabamos por conseguir também um olhar sobre nós próprios. A vida em sociedade, nesta sociedade “dos nossos dias” obriga-nos a ser artificiais, a escondermo-nos uns dos outros e até de nós próprios, a mostrarmos apenas “o que fica bem”, nem que para isso tenhamos de espezinhar, de deitar abaixo o próximo. A poesia tem esta habilidade de nos libertar dessa hipocrisia porque tem o poder de nos fazer questionar. Nesse sentido, pode também ser francamente útil. A este propósito, devo dizer que há um sentimento que ultimamente me tem assaltado e que justifica esta minha maneira de pensar e de escrever e que está patente neste livro: a necessidade latente de sermos mais nós, de nos desligarmos da artificialidade, da ilusão do termos que ser (e de ter) mais e mais, a pretexto vá-se lá saber do quê. Como diria Fernando Pessoa, para além de “ser a minha maneira de estar sozinho”, a minha escrita serve para compreender este mundo em que nos corrompemos uns aos outros e, tantas vezes, a nós próprios.

O poeta é um leitor incómodo do mundo. Queres comentar?

É a mais pura das verdades. A poesia deve ser como uma lâmina afiada a deslizar na pele. No entanto, dizer o que os outros não dizem ou não sabem dizer pode ser uma tarefa ingrata. Transforma o poeta nesse tal leitor incómodo. É aquele que olha e sente a essência das coisas, que se apercebe, e que o diz, e isso torna-o num destabilizador. Um poeta fala demais. A verdade é que as pessoas ou têm medo dos poetas ou os acham ridículos. Há também quem os admire… São os poetas que ainda não sabem que o são ou que não querem admiti-lo.

O que fica inscrito no final dum poema? A consciência do próprio autor? Ou o poema vai mais além da tua consciência ou emoção?

O poema vai até onde o deixarem ir. Às vezes nem o autor tem consciência daquilo que escreve. E tantas vezes ele próprio se redescobre no seu próprio poema. Acho que o poema é algo que brota sem que o poeta o convoque. O poeta sente necessidade de dizer o que sente. Uma vez escrevi que “há um vazio essencial que antecede a escrita, depois vem um perfume que se vai espalhando, uma presença que se constrói quase sozinha e se revela discretamente”. O poeta é capaz de experimentar esse perfume e de exprimi-lo verbalmente. Pode falar-se numa consciência do autor inscrita no poema porque a arte poética consiste em ser-se capaz de explicar esse perfume, da forma como cada um o sente. Mas a verdade é que a poesia está presente em tudo. É preciso é senti-la.

O que procuras no poema? Uma nova estética no dizer, ou uma nova figuração na forma de sentir?

Não sei se procuro algo novo, pelo menos conscientemente. Quero apenas dizer como sinto primeiramente, como se me surge: rápido, puro e duro. O poema não deve andar com rodeios, deve ir direito ao assunto. Não serei o primeiro a tentar este tipo de figuração na forma de sentir. É deixar a sensação irromper sem impor-lhe regras e deixá-la fluir através de um olhar atento para o real de todos os dias.

“Os nossos dias” é um livro construído pela memória?

É um livro que convida a memória a questionar o presente, que confronta o enfado dos nossos dias enquanto resultado do esquecimento da adolescência, a favor de uma responsabilidade necessária, do ter que ser-se adulto, “distinto” e respeitável. De repente temos trinta anos e vemo-nos metidos num mundo vazio, num mundo de dissimulação onde a hipocrisia e os sorrisos falsos imperam e onde tanta gente quer ser aquilo que não é. Um mundo onde não se hesita em pisar os outros. Olhamos à volta e vemos tanta gente completamente inadaptada na vida mas a ocupar cargos ilustres, com uma vontade louca de largar tudo mas sem força para o fazer, tanta gente que sente vontade de voltar atrás na vida e seguir outros caminhos, gente com vontade de desaparecer, de acordar de um mundo de ilusão, de puxar fogo à brilhantina e dizer “Basta!”. Acho que este livro resulta do facto de, ultimamente, andar a tomar mais atenção ao descontentamento que tantas vezes encontro no olhar das pessoas. Talvez resulte também de alguns anos a movimentar-me num meio onde apesar da insipiência tantas vezes evidente, todos se acham o máximo, em resultado do título e da arrogância associada, que fazem questão de patentear.

“Se eu tivesse certezas sobre quem sou / não haveria necessidade na escrita deste texto / não precisaria de me vasculhar por entre as palavras”. É nas palavras que procuras a pessoa que és entre o passado e o instante futuro?

Afinal não são as palavras que nos exprimem, que nos explicam? É através delas que encontramos explicação para nós próprios. Quem escreve, escreve-se. É através das palavras que podemos dizer quem somos, o que somos e porque somos. Talvez seja essa a razão da escrita: dizer, para dizermos a nós próprios.

“Às vezes esqueço-me de onde estou / um pinhal em chamas e eu no centro/ de isqueiro na mão” A incerteza parece ser a ignição destes poemas. Concordas?

Sim, é verdade. A vida é toda ela preenchida de incertezas, de dúvidas, de hesitações. Muito raramente alguém avança sem olhar, sem se certificar do passo que vai dar a seguir, ainda que se possa dizer o contrário. Mas a verdade é que às vezes – tantas vezes – nos deparamos em situações em que nos metemos, mesmo depois de muito reflectir, que não fazemos a mínima ideia de como ali fomos parar. E nós lá estamos, a olhar para a fogueira que ateámos, já sabendo que iria arder, de isqueiro na mão, bem ao centro, sem fuga possível…

Parafraseando um poema teu: Um poema em chamas e o poeta de isqueiro na mão. Será esta a força combustível do acto poético?

Escrever é puxar fogo, é deixar arder, é rir enquanto arde, até que a chama nunca se apague. Um poeta nunca tem medo de se queimar, porque o mundo é todo ele combustível, inflamável. E ele sabe disso. E faz uso disso. E arde e deixa arder. E ri-se disso. Mesmo que se encontre bem no centro das chamas…

Entrevista publicada no suplemento S do jornal Postal do Algarve

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