quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? - 18

 
 

Por FERNANDO CABRITA

ÁREA AFECTADA – Fernando Esteves Pinto
ARTE MENOR - Vicente Vegazo

O mistério da poesia é um dos enigmas sobre ao quais seguramente mais se terá escrito. Um poema, uma simples quadra, um verso que seja, dão debate, motivam palestra, geram análise, fornecem tratados inteiros a tentar penetrar no âmago desse fenómeno. Literatos, estudiosos, críticos e simples curiosos dissecam o poema e o fenómeno poético, em busca do sentido último, do cerne, do núcleo oculto, do dom misterioso.
Como escreveu já Ramon Nieto num artigo que recordo da minha adolescência, se a literatura/poesia não serve para nada, não se compreende porque é que um livro provoca mais receio do que um maço de algodão ou um pôr do sol. Em contraponto, diria Jean Cocteau, aliás citado por um dos dois poetas a que hoje aqui aludimos: a poesia é imprescindível; e eu gostaria de saber para quê.
Os dois livros que agora nos ocupam, percorrem ambos esse caminho da poesia que se interroga a si mesma. Os poemas querem desvendar o mistério: o que é a poesia? Para que serve a poesia? Perguntas que surgem, de passo com a criação poética e a elaboração do texto, mas obviamente sem resposta definitiva. Cada dos autores adianta as suas ideias, as suas possíveis explicações; mas é claro que o mistério, a final, persiste e persistirá.
Fernando Esteves Pinto não precisa de apresentação. É poeta cuja obra vai para além da poesia, abarcando o romance e a novela; e é também editor. Neste seu livro, Área Afectada, há uma escrita cerebral que de página para página decorre à volta dessa questão, aliás anunciada como um propósito no poema de pág. 22: «Pensar a linguagem do poema./Despertar no corpo da língua/ um circuito cerebral.» No fundo, é essa a interrogação do autor, enquanto cria: «em que lugar do pensamento construir o poema?/ Em que silêncio está a escrita do silêncio?» Em alguns textos penso encontrar algo de Salette Tavares, que o autor todavia me confessou não havia lido; mas que transmite a mesma ideia no seu Lex Icon, velhinho de décadas e sempre actual. Onde Salette declarava: «Dêem-me palavras que eu descobrirei as coisas/ dêem-me coisas que eu descobrirei as palavras/ Entre as palavras e a coisa o intervalo é nenhum/ palavra ou coisa a eloquência pertence-lhes: à palavra porque diz a coisa/ à coisa porque diz a palavra», Esteves Pinto diz, com o mesmo poder poético e analítico, «o objecto dá à palavra o sentimento da língua. /Um rumor de água e de música que o corpo/ vai gravando na efémera lucidez. / O objecto é o estado sólido da fala» (…) – pág. 5.
É a mesma inquietação, apesar de vazada em forma de resposta. Mas são, claramente são, perguntas que ali sobrejazem: de onde vem a música das palavras feitas verso? Que poder próprio as move? Que relações existem entre o pensamento, a palavra, a luz, os objectos? Há um pensamento prévio à escrita, ou ela e ele são coevos, simultâneos, construindo-se enquanto se produzem? Cito o poema de pág. 53: «Improvisas uma forma de aceitação enquanto escreves.» Ou o de pág. 29: «escrevo como que penetro o ruído/ da luz trabalhando o pulso.»
E nesta pesquisa sobre o sentido e as relações entre pensamento e palavra, entre língua e objecto, surgem naturalmente os demais factores: o corpo, cantado com profundidade ao longo do livro, mas com extensa claridade nos poemas da pág. 20, 27, 31, 35, 43 e 56; e a memória, o silêncio e – acima de tudo – o tempo. O poema no tempo. «Inclinada no tempo, a noite devora o rosto» (pág. 32). Dessa destruição nascem ausências, perdas; e nasce e perde-se também o poema. «Um poema destrói-se de ausências» (pág. 27). Porque, diz Esteves Pinto, «o tempo passeia-se ao acaso entre colheitas de palavras» ( pág. 24).
Já Vicente Vegazo, escritor de Sanlúcar de Barrameda, Cadiz, sendo igualmente um escritor cerebral (a que não serão alheias as suas qualificações em Filologia Hispânica, o seu professorado em Língua e Literatura Castelhana e a sua actividade de congressista e publicista sobre a fim da República Espanhola), já este autor, dizia, interroga a poesia com descrédito: Que poema mejoró al hombre? (pág.13). Ou, de forma mais crua, un poema no sirve para cancelar el dolor (pág.26).
Daí o título da obra, Arte Menor, que apouca a criação poética. Trata-se, todavia, de um premeditado engano. Um logro conscientemente elaborado. Pôr em causa a poesia, declarar que o poeta vive engañado, que seria talvez de festejar si llegara el dia en el que escribir dejara de ser una celebracion (pág. 58), é uma tese que corre o intertexto, mas que se expõe… em poesia. E daí que naturalmente tenhamos que recordar Pessoa e declarar que Vicente Vegaza, como verdadeiro poeta, é um fingidor. O que o autor gaditano sabe. Ele mesmo inicia assim o seu poema VIII, a pág. 22: El poeta fingira hasta consigo mismo(…).
E embora o tom do livro se mantenha ao longo de toda a obra, levantando o estandarte da vida contra o estandarte da poesia (Da la impresion de que algunos poetas/ como los peces/ no saben que afuera está la vida(…) - pág.35; ou cuando has desertado de la vida/ cuando has preferido refugiarte/ en algun desierto o en el vuelo de las metáforas – pág 46), apesar desse aparente conflito, a leitura demonstra que a poesia é, afinal, a verdadeira razão deste livro. O seu mistério, a sua profunda inquietação, as interrogações que põe. Acima de tdoas esta: para que serve um poema? E nesse suposto confronto entre a vida e a arte, na verdade não há confronto. Uma não vive sem a outra. Daí que Vegaza cante também, com iniludível força poética e com uma concisão assinalável – marca, aliás, da sua poética –, os mendigos e os tristes a que a poesia é alheia, como esse de pág. 27. Vida e poesia. Poesia e vida.
E esse é talvez o grande mistério que se não desvenda.
Y a pesar de todo, nos consuela/ creer en la poesia,/ lo mismo que en una metafísica. /Y tenemos fe en ella/ anque nos sea imposible/ meter el dedo en su llaga/ y las pruebas desmientan/ su luz o la salvación. (pág.68).
Área Afectada é uma edição de Temas Originais, de 2010; e Arte Menor foi editada em 2007 pelos Libros de Bolsillo de la Deputacion de Cádiz.