sexta-feira, 26 de julho de 2013

leituras

 



Dois autores:

 

Fernando Esteves Pinto (FEP), nascido em 1961, natural de Cascais e residente no Algarve (Olhão) há várias décadas, autor sobejamente conhecido e integrado no grupo da nova geração de talentos nacionais (José Luís Peixoto, Walter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares e José Carlos Barros, etc…) com várias obras publicadas e premiadas na área da poesia, romance e ensaio. Também Editor (revista de literatura Sulscrito e 4aguas).

 

Fernando Pessanha (FP) nascido em 1980, natural de Vila Real de Santo António, músico, compositor e historiador (“A cidade Islâmica de Faro”edições Mandil 2013), membro da CEPHA; sendo “Encontros Improváveis” a sua primeira obra de ficção.

 

Com uns representativos 20 anos de diferença na idade, estão, no entanto, os dois autores, irmanados por“improváveis” afinidades e cumplicidades geradas no quadro da movida cultural do Portugal democrático e Europeu contemporâneo, sobretudo a partir da mudança de paradigma que desde os anos 80 veio anunciar uma sociedade pós-industrial e de informação assente no sector terciário dos serviços e de classe média generalizada. Sociedade mais a fim de estabelecer laços e cumplicidades intergeracionais, culturais, raciais etc… do que os tradicionais blocos classicistas assentes em posturas de cariz ideológico e sectário, actualmente tidos como redutores e castrativos, produtos ultrapassados da lógica modernista das sociedades industrializadas e tecnocráticas anteriores à nova sociedade de informação.

 

Nascidos e criados em famílias oriundas do mundo estratificado do trabalho com poucos ou nenhuns recursos literários (casa sem livros), obrigados a assegurar desde cedo a sua autonomia e subsistência, entram no mundo da criação resgatando o tempo às rotinas da vida profissional, criando nas horas escassas, nos intervalos da labuta. (Património Bukowski de FEP; Os Machados, A Livreira e o Escritorde FP).

 

A pressão de uma situação, a todos os títulos periférica e suburbana, resultante dessa condição socioeconómica e cultural vai-se reflectir no enfoque social da sua produção marcada pelo desencanto, pelo morbos de uma redução existencial gerada numa ausência de futuro ou ideal, condição assaz comum nas recentes gerações das sociedades ocidentais em capitalismo terminal (Saga in FEP e A Livreira e o Escritor in FP). É neste clima que ambos os autores se movem numa estratégia de distanciamento pela ironia e de exploração mórbida das relações sociais marcadas pelo abandono dos sujeitos ao solipsismo narcísico e autista de um ambiente em constante mutação. Impossibilitados de estabelecer afectos estáveis e desejáveis, caem num universo de incomunicabilidade, inclusive consigo próprios (culto do silêncio e do vazio), gerador duma sensação de sortilégio e acaso marcados pelo absurdo e equívoco nos encontros/desencontros sempre improváveis, algo inúteis e desviantes da amalgama urbana da vida acelerada da competição generalizada (Observação do Pensamento,Saga, in FEP; e todo o livro de FP). Traços de carácter que se foram instalando na modernidade, com autores como Kafka, Poe, Pessoa, passando por Joyce, Becket, Sartre, Camus, Vergílio Ferreira, entre muitos outros, onde é patente a progressiva perda dos referentes que durante séculos apoiaram a narrativa literária.

 

Deus, o Homem, a comunidade implodiram sob a pressão do progresso tecnológico isolando o sujeito numa orfandade ôntica, dir-se-ia amnésica, afundando-o num niilismo sem recurso. O expressionismo brutalista e surdo deste modo existencial parece ser a única forma de comunicação pessoal e interpessoal (Saga, Coração da Cidadein FEP; A Psicóloga, O Acidente, in FP). O grito (lembrando o quadro de Munch e o não menos emblemático poema o UIVO de Alan Guinsberg), único esgar audível num universo nocturno povoado de fantasmas/zombies que circulam penosamente saindo e entrando na vida dos afectos como assombrações, num sonâmbulo microcosmos tão vivido quanto sonhado. O romance negro manifesto no goticismo de um Poe trespassa o clima de alguns contos de Pessanha (O Acidente), que surrealizando kafkaniamente (A Psicóloga), ora lançando-nos na teia dos equívocos Camusianos (A Madrasta; Os Machados) ou, na vertigem do sortilégio Sartiano (A Prima) vai-nos envolvendo no clima de uma psicologia existencial, especialidade fenomenológica comum à densa prosa de auto interpretação de Fernando Esteves Pinto, como em (Observação do Pensamento), acentuando a afinidade de ambos os escritores a uma abordagem de teor existencial.

 

É também recorrente a presença nas páginas das duas obras da única e fatal âncora do sujeito em desagregação: O Corpo Erotizado (A Madrasta, A Prima, Os Machados, de FP; Bukowski e Lydia Vance, Saga, Coração da Cidade de FEP). Centro vulcânico da compulsão sexual, o corpo, que exacerba e requisita em desespero salvífico, o eu concreto e coisificado, centro sensitivo, poço escuro da volúpia emocional e presencial do sujeito.

 

Dois autores cuja obra difere no estilo, recursos narrativos, maturidade e formação assinalando uma variação geracional do “estado de consciência” e de sociabilidade face à condição dominante da época, que teima em perdurar nesta espécie fim de tudo que habitamos. Idade terminal pronunciadora de enormes catástrofes, arrasta na sua queda os valores e as ideias, alicerces de qualquer sociedade humanista rumo a uma repelente trans-humanidade. Pesadelo que promove um gélido e idiota ser protésico: o andróide humanizado, o herdeiro da terra e mentor da saga iluminista que oferece a humanidade de barato, em sacrifício ao Deus Progresso, Pai da famigerada Modernidade e da sua colossal impostura.

 

É neste contexto que, penso, devem ser lidos estes dois livros: como núcleos de resistência humanista. Uma resposta de bem-humorada e fina ironia (Terapia dos Livros in FEP; e todos os contos de Encontros Improváveis de FP),dando-nos sinal positivo da subsistência e sobrevivência do sujeito soberano e imprevisível, capaz de alterar a actual condição e desafiar na sua anónima e épica luta as forças devastadoras que incautamente criou. Oxalá o consiga, no entanto, só a arte e a criação é capaz de proteger a individualidade e criar o distanciamento lúcido. Delas depende a compreensão necessária ao sentido de existência do Humano Sentidoque nestes dois livros é superiormente questionado e equacionado à luz de uma profunda e contemporânea visão.


José Bivar
Bela Mandil, 9 de Julho de 2013.

 

 


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Leitura

 


«Encontros Improváveis» é o primeiro livro de ficção do historiador Fernando Pessanha. Na obra, e ao longo dos contos que a compõem, o autor vai tecendo enredos inventivos com imagens mais ou menos cristalizadas no tempo e espaço. Nesse âmbito, é notória a preocupação do autor para desconstruir visões unilaterais que costumam funcionar como base de preconceitos na sociedade dos dias de hoje, havendo nestes contos uma ponte entre o que é mundano e espiritual. Amplia-se aqui o processo perceptivo, a dialética enquanto instrumento de leitura capaz de levar o sujeito a compreender a multiplicidade e o lado híbrido das imagens. Ao longo da obra vemos constrangimento, diferentes enquadramentos e, claro está, situações insólitas, improváveis, sempre com muita acção e fôlego acelerado, com uma concessão, do meu ponto de vista benéfica, a um lado mais cinematográfico. Assiste-se também a uma permanente reflexão em que se indaga permanentemente a função do ser, a temporalidade e a existência no mundo. É porém uma reflexão indirecta, no sentido em que é o leitor que reflecte a partir das cenas, muitas delas fortes e com um final surpreendente e de ruptura com as próprias palavras até então. É a literatura enquanto devolução, mas com risco corrigido e calculado, espelho que movimenta o corpo apenas pelo olhar na sua direcção. Os temas são, alguns deles, fortes, mas sempre tratados com elegância, convidando o leitor a sentir a força das cenas, integrando, ele mesmo, os fantasmas e os medos de cada uma das personagens.

Tiago Nené