quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Rui Costa

1 – Depois de “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves” – 2005, passando por “O Pequeno-almoço de Carla Bruni (2008), e agora o mais recente livro de poesia “ as Limitações do Amor são Infinitas”, consideras que houve uma evolução ao nível da temática e poética na tua escrita?

R: Houve uma evolução na forma e nos temas. Interessa-me pôr as coisas fora do lugar. Tratar a metáfora de uma forma metabólica, como se fosse um bicho, e as coisas mais concretas (como os limões e as pataniscas de bacalhau) como se fossem carburadores universais.

2 – Não se tem vislumbrado a presença da crítica literária em relação ao teu trabalho. Crês que os críticos existem?

R: O livro “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves” mereceu referências ou artigos de Fernando Guimarães (no “Jornal de Letras”), da Vera Vouga (na “Revista da Faculdade de Letras do Porto”), do Luis Carmelo (no livro “A novíssima poesia portuguesa e a experiência estética contemporânea”), do Francisco Saraiva Fino (na revista brasileira online Germina), do Henrique Fialho (no extinto blog “Insónia”), e mais uma ou outra. A edição está esgotada ou perto disso, tendo em conta os direitos de autor que já me foram pagos.
Já o meu romance “A Resistência dos Materiais” não mereceu nenhuma crítica impressa. Talvez os críticos não o tenham lido, ou então não gostaram. É um romance bastante exigente. Quando o concluí tinha a perfeita consciência de não se tratar de um romance comercial. Era o que eu queria escrever naquela altura, sei que nunca mais conseguirei escrever outro livro sequer parecido.
Quanto a “O pequeno-almoço de Carla Bruni”, gostei bastante da apresentação que a Carmen Yañez fez dele no Salón del Libro Iberoamericano de Gijón.
Gostava que o livro de poesia “As Limitações do Amor são Infinitas” tivesse maior visibilidade, seria uma boa recompensa para a pequena editora (“A sombra do Amor”) que decidiu investir algum dinheiro nele.

3 – Acreditas que a poesia convencional, sem grandes rasgos de novidade formal, estética, e cuja temática se inclina para o espírito geral dos leitores, não os obrigando a questionar muito a interioridade que determinada linguagem evoca, ainda é tradição e, por isso mesmo, atrai mais leitores e estabelece um pacto de comunicação com a crítica?

R: Não tenho nada contra quem escreve para ganhar dinheiro com prémios literários. Até agora não o fiz, mas não me repugnaria fazê-lo, por brincadeira também. No entanto, não assinaria com o meu nome um livro de que não gostasse.
Há vários prémios literários que são fracos, porque os membros dos júris são maus escritores ou maus leitores. Nestes casos costumam escolher livros sem nenhum tipo de rasgo, que eles chamam de “coerentes”, e de que louvam “a afinação da voz poética”.
Eu não tenho jeito para vender a minha banha da cobra. Costumo dizer o que me apetece, e não ando a tentar ser amigo de toda a gente, seja crítico ou editor. Sei que assim é mais difícil, mas a minha única alternativa é tentar ser ainda melhor, e disciplinar um pouco mais a preguiça.

4 – De que modo partes para o poema, isto é: levas contigo uma experiência, ou uma série de ideias e com esses instrumentos trabalhas a experiência que o poema pede no acto de escrever?

R: Parto sempre aos esses, para despistar os polícias.
O poema “A nuvem prateada das pessoas graves” surgiu a partir de um senhor de Campo de Ourique que era muito tímido e um dia começou a falar comigo. O “poema inútil com montanha” surgiu depois de um mergulho no Douro, em frente a uma espécie de montanha verde. O poema “O pão” é sobre uma pessoa que conheci em Inglaterra. O poema “Eternidade” não sei como surgiu, talvez tenha origem numa vontade de ritmo, tal como o poema “Music Box”. E por aí fora, só consigo falar um a um.

5 – Tendo em conta tudo o que te rodeia e te toca como pessoa em relação com o outro, que circunstâncias te vocacionam para a experiência do acto poético?

R: O que me motiva é a fome, mas não sei de quê. Ando sempre com fome. Como muito, bebo muito, vicio-me com facilidade. Há uns anos olhava para as pessoas de uma maneira sôfrega, mas isso está a mudar. A maior parte das pessoas da minha idade desiludem-me: são muito carreiristas, só pensam na vidinha e não dão ponto sem nó.
Acho o universo giro, sobretudo com umas boas sardinhas e um vinho verde muito frio à frente. Claro que é objectivamente injusto, de uma forma que chega a meter nojo - Deus é um bocado inapto, porque foi feito à imagem e semelhança do homem.
Também gosto de mulheres. Têm problemas no motor de arranque mas são muito mais surpreendentes do que os homens. Sempre me dei muito mais com mulheres, como namoradas ou amigas. Os homens são um bocado chatos, sempre com aquela preocupação de dizer coisas engraçadas.
Mudo muito, ainda não me conheço bem. Já fui advogado, sentia-me humilhado com a vida que tinha. Com 31 anos decidi mudar completamente de vida. Sou livre, tento, não deixo que me façam a cabeça.

6 – Recentemente falaste-me num processo que consistia em o autor auto-falsificar-se como forma de se distanciar do que antes tinha escrito e assim conseguir mover-se noutro espaço poético de comunicação, recorrendo a uma linguagem exclusiva para esse fim. Queres comentar?

R: Podes tentar escrever um romance de aeroporto, por exemplo, como exercício criativo. Experimentar relações causa-efeito, tornares-te um manipulador “estratégico” ou mesmo idiota. Isto para mim pode ser interessante, porque eu desvalorizo completamente o “estilo”. Em vez de um estilo, identificável até pelo leitor distraído, preferia pôr em prática mil estilos, um milhão. Ainda não tornei a minha personalidade flexível o suficiente para fazer isto. Sou bastante orgulhoso, e isso dificulta o esquecimento do eu necessário ao desapego dos nossos habitozinhos.

7 – Não será o poeta uma cópia de outros poetas?

R: Há poetas que nos marcam demasiado, em certos períodos. É preciso matá-los. As falsificações são coisas boas, as cópias não. São coisas diferentes: o falsificador engana duplamente, deixa sempre uma marquinha sua para confundir o expert. O falsificador podia ser o melhor violinista do mundo, mas contenta-se apenas com a ideia.

8 – Julgo saber que procuras na tua poesia o caos na perfeição. A ser verdade, concordas que a linguagem é um espelho que deforma e evolui para uma expressão de sentido que não está ao alcance de todos os sujeitos comunicativos do universo?

R: A poesia existe nos limites da linguagem, tal como a filosofia. Já sabemos que por cá não podem andar todos no limite ao mesmo tempo - há regras genéticas no universo que garantem uma estabilidade relativa.
Há coisas que não costumo conseguir comunicar com as pessoas. Por exemplo: há tempos soube que as vacas são responsáveis por 10% da poluição, aquela lixada que dá cabo da camada de ozono. Senti-me extremamente solidário com elas, porque percebi que a imagem que as pessoas têm delas vai mudar, por uma razão que lhes escapa completamente. Nem sequer envelheceram, ou perderam o cabelo, ou apanharam SIDA. São exactamente as mesmas vacas, e agora nunca mais vão ser as mesmas.

Entrevista publicada no suplemento S do jornal Postal do Algarve


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