1 – O teu processo inicial na escrita foi bastante intenso: inúmeras edições de autor, e um conjunto de textos (75 edições - de 2002 a 2005 - a que deste o nome de Fascículo. Foi uma declaração de amor à literatura?
Não sei se foi uma declaração de amor; diria talvez que foi uma declaração de existência. A edição de autor sempre me pareceu uma forma de divulgação do trabalho tão legítima como outra qualquer, a que recorri com naturalidade; se fosse hoje, talvez tivesse preferido as diversas ferramentas que a internet faculta. Mas o importante era agir, divulgar o trabalho; não ficar de braços cruzados, à espera. Não tanto declarar um amor mas antes declarar uma presença.
2 – É curioso verificar que, sendo tu um jovem autor, tivesses a preocupação de procurar os leitores dos teus livros artesanais, chegando inclusive a enviares algum material para as bibliotecas públicas. Queres recordar esses tempos?
Correspondeu a um período muito interessante mas que, naturalmente, foi ultrapassado. Havia alguma utopia, alguma ingenuidade, uma crença inabalável no valor do meu trabalho mas também na generosidade dos leitores, na possibilidade de conseguir captar a sua atenção. Importante parecia-me desenvolver um esforço de divulgação, de procura de um público, de afirmação do nome; ser activo e diligente, se possível original. Ir à procura de quem se pudesse interessar, leitor a leitor.
3 – Colaboraste no DNJovem (suplemento literário do Diário de Notícias), coordenado pelo Manuel Dias. Como sabes, o DNjovem foi a primeira casa editorial de muitos escritores, hoje bem conhecidos no meio literário português: José Eduardo Agualusa, José Luis Peixoto, Pedro Mexia, etc. até que ponto foi importante a tua passagem pelo suplemento?
Colaborei no DN Jovem com muito gosto, com muito orgulho, mas apenas circunstancialmente, num período inferior a um ano; todos os textos que propus foram publicados mas nunca participei em encontros ou nada disso. E confesso que, na altura, pareceu-me mais estimulante a colaboração que mantive com o DNa, o suplemento editado pelo Pedro Rolo Duarte.
4 – Finalmente foste descoberto pela Deriva, editora à qual ainda hoje estás ligado como autor. Sentiste alguma vez que essa recompensa, justa, te trouxe maior responsabilidade perante quem apostou no teu trabalho e os teus leitores em geral?
Certamente. Encaro a minha actividade enquanto escritor com grande seriedade e sou muito exigente para comigo próprio, muito rigoroso; não vejo isto apenas como uma diversão, um entretenimento.
5 – Os teus livros são lidos maioritariamente por mulheres. É intencional o facto de a tua escrita se dirigir ao universo feminino? Como sabes, as mulheres lêem mais que os homens.
Serão? Não faço ideia. A minha escrita não se dirige a ninguém em específico e muito menos a um grupo tão genérico, tão heterogéneo. Penso até que a crueza das estórias, a sua destituição de artifícios, de descrições, lhe confere uma maior abrangência, de modo que se crie algum grau de empatia com leitores muito díspares. Parece-me perigoso e restritivo, artificial, escrever para um público definido e demarcado, para alguém em específico.
6 – Verifico que os espaços físicos das tuas histórias têm algo de claustrofóbico. A acrescentar a isso, cada conto tem uma ou duas personagens. É economia estrutural ou, noutra perspectiva, por sentires que mais de duas personagens na mesma história é para ti uma multidão? Logo, com um nível de dificuldade que te inibe de gerir pessoas e actos no mesmo espaço.
Interessa-me manter as narrativas simples, sem artifícios nem grandes encenações, sem malabarismos. É assim que encaro as minhas estórias: despojadas e cruas, directas. Talvez um pouco corrosivas, intimidatórias até. Sem ruído nem cenário, sem acessórios. É uma escrita que procura fixar momentos, reter-se em instantes, em fragmentos de vidas. Não há passado nem futuro, não há verdadeiros contextos: apenas um retrato fugaz e efémero, frio. Como uma fotografia; ou melhor: uma radiografia.
7 – Após três livros de histórias breves (contos), nunca te sentiste tentado a escrever um romance? O que te falta para experimentares esse género literário?
Acabei de entregar uma peça de teatro original que irá ser encenada em breve; se me dissessem há um ano que iria escrever uma peça de raiz, duvidaria muito. Fui também convidado a integrar um projecto musical, para o qual escrevo letras; se me tivessem dito um dia antes do convite que iria escrever letras para canções, ter-me-ia rido. As coisas acontecem com naturalidade, correspondendo a desafios, a vontades inconscientes, a estados de espírito momentâneos. Haverá um romance quando tiver que haver; amanhã, quem sabe; ou nunca. Fiz umas experiências em tempos mas não foram esforços honestos, na sua génese estavam motivações desadequadas; foi um erro, que tentarei não repetir. E de qualquer modo, irrita-me um pouco a insistência na necessidade de haver um romance; como se escrever contos fosse um esforço menor e despiciendo, uma simples preparação para algo maior e não um trabalho meritório em si mesmo, auto-suficiente. Pergunto-me, por exemplo, se alguém andará atrás dos poetas a questioná-los quando escreverão livros de ficção científica; ou se serão apenas os contistas que são condenados a uma espécie de anátema literário por ainda não terem escrito um romance.
8 – Na temática dos teus livros há um certo desencanto conjugal e uma esperança indecisa que dominam negativamente as personagens. É o lado menos iluminado da vida que te inspira?
Pois, o que me inspira… Seria mais fácil (mas também muito desinteressante) se se conseguisse definir de modo científico onde reside a inspiração, o que despoleta o processo criativo; e, depois, bastaria criar automatismos, desenvolver rotinas: e a obra nasceria, enfadonha e desnecessária. Mas não funciona assim. A inspiração, no meu caso, pode nascer de dezenas de modos imprevisíveis: uma frase num livro, a violência do gesto num estranho, a expressão de um rosto, o som forçado de um riso na televisão, uma ideia despropositada ou a reminiscência de um sonho, um comportamento rotineiro e inconsciente de alguém; qualquer coisa fugaz e abrupta, irrepetível. E depois há vontade de interrogar, de especular, de procurar descobrir e saber e perceber.
9 – Geralmente, um escritor tende a ser autobiográfico na fase inicial da sua carreira literária. Depois há os que abandonam essa particularidade, completamente, e os que escrevem sobre os outros ligando-os discretamente à sua própria biografia. Quanto das tuas histórias é autobiográfico?
Esse é o segredo, não é? As minhas estórias são inquestionavelmente ficções; mas em cada uma delas há sempre um pedaço de verdade, de autobiografia, que varia muito. Não me compete nem me interessa revelar qual a dimensão desse pedaço, em cada estória; caberá ao leitor adivinhá-lo, caso lhe apeteça.
10 – Numa das nossas conversas disseste-me que receavas ter esgotado a temática dos teus livros. Já tens alternativas? Que Paulo Kellerman vem a seguir?
Não será tanto uma questão de esgotar temáticas mas mais uma questão de não as repetir obsessivamente. É terrível que um escritor se deixe cair na redundância, na inconsequência, que seja incapaz de se surpreender a si próprio. Tento permanecer vigilante e auto-crítico, ser implacável para comigo mesmo; reflectir sobre o trabalho e colocá-lo permanentemente em questão; é portanto inevitável que surjam dúvidas e hesitações. O fundamental é que persista a vontade (a necessidade) de procurar e perceber, de ir mais além e mais fundo, de aprender e questionar, de desafiar.
Entrevista publicada no suplemento S do jornal Postal do Algarve
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Paulo Kellerman
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